Se caiu sem pedir licença, ou pediu licença para sair... não sei, confesso.
Confesso que já ali estava quando cheguei, é só o que posso testemunhar. Agora, o que posso supor? Pode ter sido algo que lhe deu, pode ter desistido de tudo, pode ter desistido de desistir e decidido tentar tudo pela última vez... São só suposições minhas, talvez infectadas pelo que tem sido a minha experiência nesta Vida. Posso afirmar, sem qualquer receio, que vi beleza no momento, senti que aquele quadro era muito mais do que o que via. Fui somente testemunha do que vi, e poeta do que imaginei. Tudo o que possa acrescentar seria apenas inventar... Por isso limito-me a dizer o que vi.
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- Já não me bastava este problema atípico, agora isto - suspirou Brado.
Brado Brite é um homem cansado, cansado da cabeça. Também pudera, experimentem lá fazer uma caminhada enquanto fazem o pino e depois digam qualquer coisa. Desde que tinha pés na cabeça, que Brado praticamente não tinha amigos. Só Marlo e Tito, amigos de longa data, longas conversas e bebedeiras, tinham batido o pé à situação e feito pé firme em se manterem a seu lado. - Não são calos que nos vão separar - disse Marlo. - E muito menos chulé - completou Tito. Mas hoje algo ainda mais estranho estava a acontecer. O sol não tinha nascido, ainda, mas estavam a nascer buracos do chão. Quando os amigos se juntaram para analisar a situação, a confusão ficou instalada: Marlo diz que são pontos. Tito diz que sim, são buracos. Brado diz que deve andar a comer mal, só uma quebra de tensão pode explicar tais acontecimentos... Eu não sei, ou talvez saiba, mas ainda não queira que vocês saibam... Uma manhã normal, após uma noite normal seguida de um dia... perfeitamente normal.
Tinham vindo acabar de levar o lixo, a vizinha de passear o Lulu e Lulu de ouvir os lamentos diários da dona. O despertador toca. O despertador toca mais cinco vezes e Brado Brite decide que é hora de se levantar. Passados vinte minutos tenta esticar as pernas para colocar os pés no chão, eis que algo de estranho se passa. Um cheiro familiar vindo de um sítio nada familiar para o cheiro vir . Chulé, cheiro a chulé mas que não vinha do peito ou da cabeça dos dedos dos pés, mas da cabeça, a que está a modos que agarrada ao pescoço. - Cum Catano - pensou Brite - tenho os pés na cabeça. E agora? Como vou apertar os cordões? Para já não pensar em como raio vou cortar as unhas? - Brito suava em bica, pelos pés claro. - Como faço para me pentear? Já vou chegar atrasado ao trabalho, é quarta feira e a terceira vez esta semana que me atraso. - Tenho pena do Brite, mas o que podemos nos fazer? Coçar-lhe os dedos dos pés? Por uma questão de privacidade, o interveniente neste conto não vai ser identificado pelo nome inventado, mas sim por um qualquer aleatório.
Mais se informa que não serão aceites reclamações ou sugestões. A história é como é, nunca poderia ter sido de outra forma, pois no fim, teria sido sempre como foi. O "como poderia ter sido" é apenas um analgésico mental, um supositório cerebral, uma aspirina tipo espiritual. Mas vamos ao que nos trouxe hoje aqui: X não sabia como o fazer, por isso, decidiu traçar um plano. X percebeu que não fazia puto de ideia de como se traçam planos, por isso achou melhor esboçar uma ideia. Ao fim de dez penosos segundos, X assumiu que não sabia esboçar um sorriso, quanto mais uma ideia. Minutos que pareciam horas passaram, X decidiu que tinha de fazer algo e logo se apercebeu do que tinha feito sem se aperceber, e passo a explicar: Tinha decidido, desde o início que tinha decidido e estava sempre a decidir: Decidiu traçar um plano, esboçar uma ideia e, por fim, decidiu que tinha de fazer algo. X achou que era demasiada decisão para uma pessoa só e, com muito esforço, decidiu mais uma coisa: Era tempo de parar... Embrulhou todas aquelas decisões e com uma perícia estonteante, lançou-as directamente para o lixo. - Assim ninguém se magoa e sempre faço reciclagem - Disse X. E disse bem. Segunda feira, dia 10 de Fevereiro de 2020.
Marlo diz que são pontos, enquanto Tito afirma, com todos os seus dedos cerrados, que são buracos. Bem, a minha posição não me permite intervir. Ditam as regras que tenho de permanecer imparcial. Portanto, uma vez que hoje estou virado mais para as regras do que, sei lá, para a jardinagem, decidi adoptar a imparcialidade como quem adopta um gato vadio, ou seja, muito giro e fofo, mas que a qualquer momento ainda me morde o mindinho. E agora que o efeito do comprimido que tomei entre dois golos de café, começa a fazer efeito, vamos lá então ao que interessa. Marlo e Tito, duas pessoas com cabeça tronco e membros e um mau humor típico de segunda feira. Marlo não desiste, hoje é segunda feira e aquilo são pontos, ou pontinhos para os amigos. Parecem trabalhadores a caminho do trabalho e alguns do emprego. Todos a seguir o seu caminho, suficientemente perto para se verem e sentirem o hálito, mas afastados o suficiente para lhes ignorarem a tristeza. Tito esboça um sorriso, só meio lábio. Um médico desatento ainda o acusa de princípios ataque cardíaco, mas ele não se demove. - São buracos, buracos, buracos. Buraquinhos se preferires. Buracões se fosses uma mosca, ou buraconas se fosses malicioso, sim, porque a malícia é como a pastilha elástica na sola, está sempre ali qualquer coisa- disse Tito. - Tito, Tito, se estivesse aqui a tua mãe já te tinha posto na ordem, são pontos, pontos como pessoas. - Marlo, são buracos onde as tuas pessoas se enfiaram, como quem enfia os braços nas mangas. Bem, perdoem-me (ou ignorem-me se for mais fácil), mas como participante imparcial que sou, tenho de intervir. E agora alguém pergunta: mas então não era imparcial? Agora diz que vai intervir? - Bem, em relação a essa questão, que eu próprio acabei de inventar, mas deveras interessante, invento também uma resposta: Eu é que sou o inventor, fui eu que vi os pontos esburacados alternados por buracos colocados em pontos minuciosamente escolhidos, portanto, tendo em conta o facto de Marlo e Tito, muito provavelmente devido ao facto de: ou ser segunda-feira, ou não terem lavado os dentes, terem decidido, por sua conta e risco, levado esta discussão muito além do que eu tinha definido como saudável, diz a minha consciência que é hora de intervir. Aproveito ainda o momento para informar que qualquer reclamação deve ser dirigida a um dos pontos ou a um dos buracos. Eu digo que são pontos de vista, digo que a vista atraiçoa, como aquelas personagens de telenovelas. Digo que também são pessoas, juntinhas porque tem de ser, afastadas porque querem estar. Digo também que são buracos, buracos que nos prendem as pernas e a atenção, buracos tão largos que nos engolem os sonhos, e tão estreitos que nos apanham pelo pescoço, ficando metade do corpo enterrado, metade de fora. Digo também que tudo são pontos de vista, como gotas da chuva, umas molham enquanto outras, passam ao lado. Mandei os dois senhores para casa, como quem não quer a coisa. E lá foram, um pelos pontos, outro pelos buracos.. |
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